Diferenças entre marketing multinível e pirâmide financeira à luz do ordenamento jurídico brasileiro

Diferenças entre marketing multinível e pirâmide financeira à luz do ordenamento jurídico brasileiro

O mercado do MMN

Segundo informações da Associação Brasileira de Empresas de Vendas Diretas (ABEVD), o setor de vendas diretas conta com mais de 4,3 milhões de colaboradores e gera cerca de 8 mil empregos diretos, atingindo aproximadamente R$ 50 bilhões em volume de negócios.

Trata-se, à toda evidência, de um mercado em crescente expansão, que encontra campo fértil por fomentar a esperança de uma fonte de renda complementar aos seus colaboradores.

O conceito de venda direta, pelo que consta, foi desenvolvido nos EUA no século XVIII por mascates sulistas que buscavam novas frentes de mercado e passaram a comercializar seus produtos de porta em porta, expandindo os horizontes e incrementando as receitas.

Já o marketing multinível, por sua vez, tem um histórico bem mais recente, havendo notícias de que teve início com a Amway, empresa fundada nos EUA em 1959, responsável pela criação de um sistema multinível de incentivo aos colaboradores.

Desde então, centenas de empresas pautaram suas estratégias de marketing e escoamento de mercadorias nesse sistema de incentivo, entre as quais podemos citar, atualmente, as seguintes: Amway, Akmos, Dr. Pet, Herbalife, Hinode, i9 Sense, Jafra, Jeunesse, Monavie, entre outras (a relação de empresas associadas da ABEVD pode ser consultada no link http://www.abevd.org.br/empresas-associadas/)

 

Conceitos

É lícito dizer que o marketing multinível (ou marketing de rede) é o sistema de escoamento de bens ou serviços pelo qual se remunera os colaboradores não só pelas vendas diretas realizadas no varejo como pelo recrutamento de novos vendedores.

 

Segundo ZIGLAR, o marketing de rede tem a seguinte definição:

 

Marketing de rede é um sistema de distribuição de mercadorias e serviços por meio de redes compostas de milhares de vendedores independentes, ou distribuidores. Os distribuidores ganham dinheiro vendendo mercadorias e serviços, mas também recrutando e patrocinando outros vendedores que passam a fazer parte de sua downline (linha descendente), ou organização de vendas. Os distribuidores ganham comissões ou bonificações mensais, de acordo com a receita de vendas gerada por sua organização de vendas.

 

Malgrado muitas empresas sérias utilizarem-se do marketing de rede de forma legítima, frisa-se que muitas outras, travestidas de empresas de MMN, valem-se dessa estrutura de mercado tão somente para ludibriar seus colaboradores, incutindo-lhes o sonho do enriquecimento rápido que, invariavelmente, é frustrado.

 

Essas empresas inidôneas, geralmente encabeçadas por “laranjas”, na verdade, são pirâmides financeiras, as quais têm denegrido o conceito de MMN e despertado a atenção das autoridades domésticas e internacionais.

 

Pirâmides financeiras, por sua vez, são sistemas irregulares de captação de recursos nos quais os lucros distribuídos aos seus integrantes decorrem principalmente do aporte dos novos colaboradores, razão pela qual os resultados dependem do ingresso de novos indivíduos à base da estrutura e, por conseguinte, são matematicamente insustentáveis ao longo do tempo. Quando há o rompimento dessa estrutura, dezenas de milhares de pessoas são prejudicadas, principalmente as que ingressaram por último no sistema.

 

De acordo com ZIGLAR,

 

A diferença entre pirâmides e marketing de rede é: pirâmide tem uma estrutura semelhante ao marketing de rede mas um foco totalmente diferente. A pirâmide recompensa os membros por recrutarem novos distribuidores, e em geral, negligenciam o marketing e a venda da mercadoria. Agora o marketing de rede é uma boa maneira de vender mercadorias ou serviços através de distribuidores, pois o distribuidor recebe comissões sobre vendas dos produtos e serviços vendidos, e pelo recrutamento de outros distribuidores.

 

Referida lição, entretanto, é incompleta: a análise de legalidade de uma estrutura de negócios deve ser feita à luz de outros elementos, como já evidenciado pelas autoridades brasileiras, como veremos adiante.

ZIGLAR, Zig; Trad. Ana Beatriz Rodrigues. Marketing de rede de distribuição para dummies. Rio de Janeiro. Campus, 2001, p. 2.

 

Cuidados com as falsas “oportunidades de investimentos”

Com vistas a dirimir quaisquer dúvidas acerca da idoneidade das milagrosas “oportunidades de negócios” ofertadas por tais empresas, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) elaborou uma Cartilha de Proteção ao Consumidor, destacando alguns pontos que merecem atenção do investidor, a saber:

 

  • exigência de pagamento inicial de valores expressivos para adesão, especialmente se comparado com o custo do produto e muitas vezes sem uma contrapartida real (ex.: kit de produtos para revenda);
  • o trabalho do vendedor não está claramente vinculado a um esforço real de vendas efetivas do produto. Pode até haver alguma atividade envolvida, mas ela faz pouco sentido para a venda, não tem um valor econômico ou poderia ser realizada de forma automática por programas de computador;
  • há promessas de altos ganhos, normalmente em pouco tempo, mas sem que haja clareza quanto a um real esforço do participante com a venda de produtos e sem que os eventuais riscos envolvidos sejam devidamente esclarecidos;
  • não há política de recompra dos produtos não vendidos pelos compradores.

O Ministério Público Federal, na mesma linha, desenvolveu, em 2016, uma cartilha intitulada O MPF de Olho nas Pirâmides Financeiras: saiba como distinguir um investimento financeiro de um golpe, na qual chama a atenção para outros pontos, além dos já mencionados pela CVM, quais sejam:

  • estoques exagerados e falta de venda no varejo (as vendas ocorrem da “empresa” para os membros recrutadores e destes para novos investidores, não alcançando o público em geral). Os recrutados são obrigados a comprar mais produtos para vender, quase sempre a preços inflados;
  • pouca ou nenhuma informação sobre a empresa – as informações são passadas apenas àqueles que desejam participar da rede;
  • vaga descrição do produto;
  • produtos com valor acima do mercado;
  • renda obtida prioritariamente da comissão recebida pelo recrutamento de novos associados ou produtos adquiridos para uso próprio, e não por meio de vendas para consumidores não participantes do esquema.

A  ABEVD também disponibiliza ao público em geral modelos de código de ética destinados à regulação das relações entre as empresas e os consumidores e entre os vendedores diretos. Destaca-se aqui a cláusula 2.7. deste último, que assim recomenda:

A empresa e o vendedor direto não devem solicitar que vendedor direto, em potencial ou em atividade, se comprometa ao pagamento de taxas de adesão, treinamento ou de materiais promocionais que sejam desproporcionalmente elevadas, nem qualquer outra taxa relacionada exclusivamente ao direito de participar do sistema de distribuição da empresa. Quaisquer taxas cobradas de uma pessoa que queira se tornar um vendedor direto devem estar diretamente relacionadas ao valor dos materiais, dos produtos e dos serviços fornecidos em troca.

Como será demonstrado, nem todas empresas envolvidas no MMN respeitam as orientações das autoridades públicas e da própria associação.

http://www.defesadoconsumidor.gov.br/images/Boletim_Prote%C3%A7%C3%A3o_ao_Consumidor-investidor/Boletim_CVM_06.pdf

 

http://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr2/publicacoes/cartilhas/guia-pratico-piramides-financeiras

 

A todos aqueles que se interessem no assunto, recomendamos fortemente a leitura dos códigos de ética disponibilizados pela ABEVD em http://www.abevd.org.br/codigos-de-etica/

 

Estudo de casos: BBOM, Telexfree e outros

Recentemente, várias empresas ganharam relevo na mídia em razão das fraudes perpetradas contra seus colaboradores, entre as quais destacamos os casos da BBOM e da TelexFree.

No primeiro caso, o produto supostamente comercializado era um rastreador de veículos; já no segundo, comercializava-se o serviço de VOIP (voice over internet protocol).

Nenhum dos casos possuía um produto ou serviço de fato escalável ou preços competitivos.

O MPF/GO ajuizou ação civil pública e outras medidas judiciais contra a BBOM  (Embrasystem Tecnologia em Sistemas, Importação e Exportação Ltda.) por crime contra a economia popular, o que fora confirmado pelo relatório da perícia contábil, do qual se extrai o seguinte:

A característica que diferencia os esquemas de pirâmide dos legítimos é a existência de “ganho passivo”, ou seja, sem que haja venda direta ao consumidor final. Assim, ao menos parcela da remuneração de um membro decorre da adesão de novos membros, sem que haja necessariamente venda direta ao consumidor. Uma forma implícita de cobrança de taxa de entrada é a exigência de compra de estoque volumoso, sem garantia de recompra pelo operador. O investidor que acredita conseguir recrutar novos membros tem estímulo a entrar na operação. Porém, ele pode estar no nível mais baixo (base) da pirâmide quando ela colapsar: pode não ser capaz de atrair novos membros, incorrendo em perda. Como a pirâmide (entrada de novos membros) é crescente, a maior parte dos participantes se situa nos níveis abaixo (base). Os investidores do topo auferirão suas rentabilidades elevadas mesmo com o colapso, pois sua remuneração advém substancialmente das comissões/bônus/taxas/presentes pelo recrutamento de novos membros.  A literatura não caracteriza um esquema como pirâmide com base na temporalidade dos contratos. É possível haver um esquema de pirâmide em que algum produto ou serviço é comercializado.  Como visto em grande detalhe no Anexo deste documento abaixo, temos que, para um associado, os ganhos ao criar redes (bônus) e trazer associados são bem maiores do que os ganhos decorrentes do esforço de vendas diretas para consumidor final, mesmo com máximo esforço e empenho nestas vendas ao consumidor final.  Para o associado, a sustentabilidade financeira do sistema materializa-se na forma de captação de associados, ao invés das vendas diretas. Em suma, é possível asseverar que as atividades da Ré constituem “Pirâmide Financeira” (ou Esquema de “Ponzi”). (GRIFOS NOSSOS).

Como muitas outras empresas, a BBOM adotou um sistema pelo qual os associados eram compelidos a pagar uma taxa de adesão a depender do plano escolhido (bronze – R$ 600,00; prata – R$ 1.800,00; ou ouro – R$ 3.000,00), assumiam a obrigação de atrair novos colaboradores para a rede e pagavam uma taxa mensal obrigatória de R$ 80,00 por 36 meses. Em contrapartida, eram bonificados de acordo com o número de indivíduos que traziam para a rede.

Recentemente, a BBOM foi condenada pela Justiça Federal a pagar R$ 100 milhões de indenização ao Fundo de Defesa de Direitos Difusos, sem prejuízo de cessar suas atividades e reembolsar os investidores.

Por seu turno, a Telexfree (Ympactus Comercial S/A) foi condenada na ação civil pública em trâmite perante a Justiça Estadual do Acre a devolver as quantias pagas pelos colaboradores, de modo a restituí-los às condições patrimoniais anteriores à contratação, sem prejuízo do pagamento de R$ 3 milhões ao Fundo Nacional de Defesa dos Direitos Difusos.

 

Em ambos os casos, além dos bens das empresas, os bens dos sócios também foram bloqueados para garantir o estrito cumprimento das obrigações decorrentes dos ilícitos.

Há diversos outros casos no Brasil que têm sido objeto de investigação na área criminal, sem prejuízo das condenações cíveis por práticas abusivas contra o consumidor.

É o caso da Monavie (atual Jeunesse), por exemplo, condenada pela Justiça do Rio Grande do Sul em 2014 a devolver os valores pagos por determinado distribuidor, que teria sido ludibriado com falsas promessas de ganhos astronômicos num curto período (TJRS – Recurso Cível n. 71004719308).

As empresas do Grupo Hinode, por sua vez, estão sendo averiguadas nos autos do inquérito policial n. 0010177-57.2016.8.26.0068, em trâmite perante a 2ª Vara Criminal de Barueri/SP, por suposto crime contra a economia popular.

http://www.mpf.mp.br/go/sala-de-imprensa/docs/not2042-pericia-bbom.pdf

 

https://www.tjac.jus.br/wp-content/uploads/2017/07/telexfree-sentenca-da-acao-civil-publica-0800224-44_2013_8_01_0001.pdf

https://tj-rs.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/153535465/recurso-civel-71004719308-rs

 

Conclusão

O marketing multinível (MMN) é um modelo de negócios legítimo para o escoamento de bens ou serviços e que tem sido utilizado por empresas de grande porte e reputação no mercado, pelo qual se remunera o agente não só pelas vendas feitas ao varejo como pela indicação de novos promotores de vendas.

Entretanto, indivíduos inidôneos têm se aproveitado dessa estrutura para praticar pirâmides financeiras, lesando milhões de pessoas mundo afora sob a promessa de lucros rápidos e pouco trabalho.

As autoridades brasileiras, em contrapartida, têm recrudescido o combate a tais práticas ilícitas e promovido a conscientização dos investidores e consumidores, bem como promovido as medidas judiciais e extrajudiciais contra os infratores.

Sem prejuízo de sanções de natureza administrativa e civil, as pirâmides financeiras violam a legislação penal, ocasionando prejuízos inestimáveis à sociedade.

Confira-se os crimes mais comuns nesse contexto de fraudes financeiras:

  • crimes contra o Sistema Financeiro Nacional (Lei 7.492/86, art. 16);
  • crimes contra a Economia Popular (Lei 1.521/51, art. 2º, inc. IX);
  • crimes contra o Mercado de Capitais (Lei 6.385/76, art. 27-E);
  • crimes contra a Ordem Econômica (Lei 8.137/90, art. 7º, inc. VII); e
  • crimes contra o Patrimônio (Código Penal, art. 171).

Para não ser ludibriado pelas falsas promessas de ganhos extraordinários, procure responder de maneira crítica as seguintes perguntas e, após, com base nas informações disponibilizadas, conclua se a tal “oportunidade de investimento” que lhe foi oferecida é ou não um engodo:

  • A empresa promete ganhos muito superiores aos do mercado em geral?
  • A empresa vende produtos ou serviços de baixa qualidade ou reduzida perfusão de mercado?
  • Os preços dos produtos são muito superiores aos preços de produtos semelhantes disponíveis no mercado?
  • A empresa seria lucrativa sem a taxa de adesão decorrente do ingresso de novos distribuidores?
  • A empresa possui política clara de recompra de estoque?
  • Os distribuidores dependem mais da remuneração decorrente da indicação de novos vendedores ou das vendas a varejo?
  • Quem são os principais consumidores dos produtos, os próprios distribuidores ou o público em geral?
  • Os ganhos prometidos pela empresa dependem de algum empenho substancial nas vendas diretas ou apenas na captação de novos distribuidores?

Lembre-se: não há dinheiro fácil!

Estude o segmento de mercado em que pretende investir e a empresa com a qual pretende se associar.

Qualquer promessa de dinheiro rápido e fácil é falaciosa.

Desconfie se o dinheiro que ganhará com essa “oportunidade de investimento” for muito superior àquilo que ganharia se estivesse vendendo o mesmo produto diretamente ao varejo, sem a estrutura do MMN.

Suspeite de estruturas que remuneram mais a indicação de novos colaboradores do que a venda de produtos ao público geral.

Por fim, caso tenha suportado algum prejuízo num desses esquemas, contate as autoridades constituídas: além de premiar as empresas idôneas que efetivamente praticam o MMN de acordo com os ditames legais e as diretrizes éticas estabelecidas pela própria Associação Brasileira de Empresas de Venda Direta (ABEVD), você certamente estará evitando que outros incautos ou gananciosos caiam na mesma armadilha e prejudiquem a sua própria subsistência nessa irracional e desenfreada corrida pela fortuna instantânea.

São Paulo, 13 de novembro de 2018.

Raphael Augusto Almeida Prado, advogado, sócio da Negromonte & Prado Advogados Associados.